sábado, 27 de fevereiro de 2016
Délire
Havia algum tempo, observava a estrada a noite. Da lua cheia até a nova, em como a claridade se sobrepunha ao negrume do asfalto. Ora eram amantes, ora competiam para ver quem se engoliria primeiro. Até hoje não havia se decidido quem ganharia esse romance.
Aquele caminho seguia deserto, ligando duas pequenas vilas avessas entre si, e escarificando os campos e as florestas vicinais. Durante o dia, era pouco frequentada por caminhões de cana e milho. A noite, era frequentada por pequenos lobos, corujas e ratos.
Da janela do seu quarto, olhava para a estrada até pegar no sono. Acordava sobressaltado, muito suado, olhando para o mesmo cenário que vira antes de adormecer. O mesmo cenário que viu durante o sono. O mesmo que vira durante seus últimos dias de vida.
Nas noites mais quentes, tinha vontade de vestir seus sapatos e andar por aquele caminho. Mas, sempre era impedido por uma sensação de inquietação abstrata. Talvez causada pelos sonhos que tinha sempre, todas as noites, com aquele lugar.
Uma noite, após mais um de seus pesadelos, decidiu sair do quarto. Não havia lua no céu. Caminhou até a beira da estrada e a observou atentamente. Nuvens de chuva cobriam as estrelas e não se podia enxergar até onde as duas pontas do caminho levariam.
A luz, amante daquela estrada, não estava ali. Somente ela, toda disponível para si. Solitária ali, no negrume, dissolvendo-se. Quis tomá-la para si e se deitou, braços abertos como uma estrela. Abraçava-a e a beijava em sua fantasia. Sentiu um choque percorrer seu corpo.
Era uma dama vestida em preto que estava ali ao seu lado. Estendeu sua mão, chamando-o para uma caminhada em seu próprio corpo. Seus olhos eram negros de asfalto. Seu sorriso era um esboço da lua crescente, seu fiel amante, que tinha se escondido de seus toques.
Levantou-se e começou a caminhar. Escolheu um lado e se foi, enquanto uma garoa começava. Segui-a a distância. Não ouvia som algum. Não via nada, a não ser a estrada ali, que o acompanhava. Não havia horizonte, nem perspectiva. Só o caminho.
A chuva parou e lufadas de nevoeiro saiam do chão. Seus olhos secos olhavam com volúpia àquela que se afastava cada vez mais. Tentou correr, porém não teve forças. Tentou chamar, porém sua voz se perdeu na noite profunda. Até que percebeu algo diferente a sua frente.
Na ausência de horizonte, um vulto branco se aproximava rapidamente. Pouco a pouco, discerniu um homem velho vindo em sua direção, de bicicleta. Tinha longos cabelos brancos, esvoaçantes. Seus olhos eram opacos e cegos. Passou ali, sem o perceber.
Amedrontado, continuou seu caminho. Seu amor agora estava envolta em brumas. Chamava-a, porém, não havia resposta. Somente silêncio e solidão. Olhou a sua frente e, novamente, o vulto branco passou por ele, de bicicleta, sem se importar.
Ajoelhou-se, aos prantos. Virou-se para voltar para seu quarto, correndo. Seus passos ecoavam pela estrada, protestando contra o que viu. Continuou por muito tempo, mas tudo parecia igual, estático, congelado. Até que, por entre as nuvens, ele apareceu.
Cheio de raiva, suas luzes o açoitaram nas costas. Eram chicotes e garras afiadas, cheias de ódio e ciúmes. Eram braços octópodes, tentáculos e sete cabeças cheias de dentes. Virou-se para confrontá-lo e perdeu os sentidos. Em seu último momento, foi cego pela luz.
Acordou em sua cama, suando frio. Olhou para fora e a noite continuava quieta. A estrada o observava, silenciosa. Seu vestido esvoaçava e seus olhos negros engoliam a pouca luz das estrelas. Fixou seu olhar e sorriu, com dentes brancos em sua boca vermelha.
Sussurou-lhe ao ouvido, uma pequena melodia:
"Não existe esperança, somente ilusão.
Não existe despertar, somente esquecimento.
Não existe inocência, somente morte."
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